O Amigo Número Um

O Reencontro

Conheci o Carlos Alberto, em contatos rápidos e esporádicos, no final dos anos 1950 / início dos 60. Ele era um dos coroinhas de Frei Cosme, no Valongo, eu um seminarista que vinha uma vez por ano, passar as férias de verão com a família em Santos. Cruzamo-nos durante algumas missas, junto com outros coroinhas. Lembro que o chamávamos de “Argentino” pelo sotaque ainda pronunciado que revelava seu país de origem.

Após esses curtos momentos de convívio, cada um com seus rumos, saiu de Santos e rodou mundo.

Também ambos, após décadas longe, acabamos voltando à cidade de nossa infância e juventude. Eu, bem depois e mesmo assim alguns anos após já ter instalado a família, pois ainda “morava” a maior parte do tempo em São Paulo, por razões de trabalho.

Em 2006, após mais uma das longas ausências da cidade, recebi de minha esposa um santinho de Frei Cosme que lhe fora entregue por um Sr. Carlos Alberto. Ela fora à loja dele no Gonzaga, levada por uma amiga comum, após conversa casual entre as duas sobre o Valongo e Frei Cosme. Na ocasião não tiveram oportunidade de trocar muitas informações, mas o surpreendente santinho já me despertara urgente curiosidade, com seu texto registrando ao final que se tratava de: “homenagem a Frei Cosme Ballmes, de uma pessoa que quando jovem teve o privilégio de ser beneficiada por ele”.

Precisava muito encontrar com o Sr. Carlos Alberto, mesmo com seu nome não soando familiar. Aquela dedicatória impessoal, mas de tantas afinidades, estava cheia de bons presságios.

Uma vez mais, no entanto, as necessidades da vida acabaram postergando, durante anos, a planejada visita à loja do Gonzaga.

Finalmente, já aposentado de vez e morando de verdade em Santos, após longa caminhada de meditação pela praia, decidi-me a entrar, de surpresa, no estabelecimento comercial do Sr. Carlos Alberto. Foi em 12/07/2011, às 11:00 hs. No recinto somente duas pessoas: Passei por uma presumível funcionária ordenando objetos nas prateleiras e dirigi-me ao senhor de barba, mais ou menos de minha idade que estava atrás do balcão, manuseando alguns papéis.

Antes de concluídas as apresentações, o Sr. Carlos Alberto, mais rápido nas lembranças, recordou-se de mim e de minha irmã que com frequência ia à sua casa em atividades da Legião de Maria, fundada e coordenada por Frei Cosme. Demorei um pouco mais para trazer à memória o coroinha do Morro de São Bento, o “Argentino”, agora sem sotaque.

Os fortes sentimentos de objetivos comuns, despertados nesse início de conversa, aumentaram de intensidade quando, à primeira menção do nome de Frei Cosme, meu interlocutor se virou e apontou para a foto do querido mentor comum, pendurada na parede atrás do balcão. Desde a fotografia, o frade franciscano se projetava sobre nós, como testemunha catalisadora daquele reencontro e do pacto que dele resultaria.


A Missão

Conversamos muito naquele primeiro dia e nos frequentes encontros e diálogos das semanas seguintes; no local de trabalho, almoçando, ao telefone ou trocando e-mails.

Ele mais do que eu. É que, ao pouco que eu amadurecera em teorias, nos últimos anos, ele contrapunha, com paixão, inúmeros projetos que fizera acontecer e outros tantos que se propunha a realizar. Seu entusiasmo incomensurável fazia com que cada vez mais eu procurasse me aprofundar na busca das razões que haviam conduzido seus raciocínios tão bem e tão longe.

Mais uma vez recapitulou sua chegada, pequenino, a Santos e como o bondoso frei do Valongo acolheu todos de sua família, ajudando cada um, nos primeiros anos de Brasil. Repassou seu tempo de coroinha e o desejo não alcançado de ingressar no seminário. Neste ponto fazia uma pausa para extravasar a profunda mágoa sobre o motivo da vontade frustrada: seus pais eram separados e os rigorosos cânones da Igreja Católica, na época, não permitiam isso aos aspirantes ao sacerdócio.

Sobre suas andanças de trabalho por vários estados de Norte a Sul do Brasil falou pouco, mas a partir do relato do regresso a Santos os assuntos voltaram a ficar mais densos.

Primeiro tratou de saber onde estava enterrado o grande amigo, para prestar-lhe as devidas homenagens e orações. Em seguida desencadeou uma série de ações práticas, no sentido de divulgar tudo que fosse possível a respeito de seu ídolo: pendurou a foto atrás do balcão, mandou celebrar missas, arregimentou antigos coroinhas como colaboradores, editou e distribuiu santinhos; até que, em meio a todas essas atividades ocorreu uma grande mudança em tudo o que vinha fazendo.

Segundo seu relato, quase em tom de confidência, carregado de forte misticismo, Frei Cosme o teria inspirado a executar a importante Missão de transladar seus restos mortais do Cemitério do Paquetá para o Santuário do Valongo. Sem vacilar, após verdadeira saga por meandros burocrático-religiosos, cumpriu a Missão no dia 8 de junho de 2003.


O Adeus

Finalizada a fase de relatos mútuos nas conversas sobre o passado, já no mês de agosto de 2011 e decididos a trabalhar juntos, com a colaboração de outros ex-coroinhas, rumamos em direção ao futuro.

No esboço de planejamento à nossa frente, dois itens foram destacados para implementação: O primeiro, por sugestão do ex-coroinha Flávio Câmara, contemporâneo do “Argentino”; criar um BLOG para servir como fórum para os “Amigos de Frei Cosme” e o segundo, na sequência, uma velha ideia do Carlos Alberto; editar um livro sobre o cultuado frade franciscano.

Animados saímos a campo para desenhar o website e pesquisar material para o livro.

Em meados de agosto, o Carlos Alberto relatou, sem grande ênfase ou drama, um problema de saúde. Acreditamos tratar-se de algo sem maior gravidade, pois tudo parecia sob controle. Sofrera uma hemorragia no esôfago, chegara até a internar-se rapidamente, mas já passava bem e pronto para novos trabalhos. Contou-nos inclusive alguns detalhes sobre reuniões que estava organizando, para o próximo mês de setembro, em São Paulo e Santos. Como, porém ele ainda teria que passar por nova cauterização, com internação, nos deixou de sobreaviso para uma possível ausência.

Continuamos com a nossa rotina de encontros, relatos e atividades, sempre avançando um pouco mais. De minha parte, tranqüilo fui passar uns dias em São Paulo, para contactos e coleta de material. Conforme recomendado procurei a Bete, Elisabete Barbero, encarregada do Arquivo Histórico Franciscano. Na volta para Santos, logo fui mostrar o material que a Bete nos tinha disponibilizado. Com a paixão de sempre admirou as três fotos que lhe entreguei, representando Frei Cosme em três etapas de sua vida, e alguns dias depois já me mostrou as fotografias ampliadas com plastificação para preservá-las.

Logo em seguida, fato inédito desde nosso reencontro, ficamos quase uma semana sem nos ver ou comunicar. Estranhei o silêncio do telefone e fora do comum a falta das convocações para dar uma passada no seu comércio, a apenas poucas quadras de minha residência.

No dia 12/09, exatos 2 meses desde o reencontro, o telefone tocou, era da loja, mas falava a Juraci, esposa do Carlos Alberto. Ele sofrera nova e forte hemorragia, achando-se internado na UTI do Hospital São Lucas. Pedi o número do quarto e os horários para visita. Ela me disse ser impossível isso, no momento.

Naquela noite rezei pelo amigo e parceiro, repassando a Oração de Frei Cosme, principalmente na parte relativa aos doentes nos hospitais.

Ele se foi no dia seguinte, 13/09, deixando-me na sensação de alto grau de perda e vazio. Vi-o pela última vez, no velório, sentindo forte incômodo no pensamento por ter convivido com ele, bem menos do que gostaria. Muitos se vão deste mundo e deixam saudades do que fizeram. O Carlos Alberto é um deles. Para mim, porém, além disso, também pelo que ele haveria de fazer.

… fará falta.

Carlos Alberto Moreira Pinheiro

Carlos Alberto Moreira Pinheiro

04/10/1947          13/09/2011

Amigo n.º 1 de Frei Cosme

Por:
German Aguirre
Jornalista
Ex-coroinha
Ex-seminarista

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