A época não parecia propícia para o agendamento da entrevista com um dos maiores jogadores da história do Santos Futebol Clube, justamente no mês de abril de 2012, onde se concentrava a maioria dos eventos comemorativos do centenário da agremiação santista. E para complicar mais, a rotina da famosa personalidade a entrevistar estava também sujeita aos imprevistos constantes, inerentes à intensa atividade como requisitado corretor de imóveis, no aquecido mercado da cidade praiana.
Ainda assim, tocou-se adiante o objetivo de marcar uma conversa, em tempo confortável, com Clodoaldo Tavares Santana, o Clodoaldo, um dos craques mais representativos a pisar no mítico gramado da Vila Belmiro, dono absoluto da camisa 5 de seu time, da Seleção Brasileira Tricampeã Mundial de 1970 e considerado como um dos melhores volantes da história do futebol mundial.
Ocorre que o tema a tratar, em princípio, não seria sobre futebol. E quando Clodoaldo soube sobre quem e o que seria conversado, imediatamente se prontificou a agilizar e administrar uma brecha entre os inúmeros compromissos, já para o dia seguinte. De comum acordo, para otimizar o tempo de conversa que acabou avançando além do previamente combinado, ajustou-se o encontro para um café, no meio da tarde, no estratégico bairro do Gonzaga.
Pelo caminho, em direção à cafeteria onde ocorreria a entrevista naquela aprazível tarde de início de outono, ainda foi possível recapitular e confrontar os singulares perfis daqueles que seriam os motivos condutores da conversação. Dois indivíduos bem distintos, mas com algumas qualidades humanas especiais e comuns, que os destacavam entre seus semelhantes.
Se alguém perguntar, aos contemporâneos que conviveram com Frei Cosme, sobre suas principais virtudes, certamente as descrições começarão por humildade e bondade, ou vice-versa: Valores significativos mesmo tratando-se de um frade franciscano.
Por outro lado, se alguma pessoa indagar junto a um grupo de boleiros ou colegas de Clodoaldo, mesmo daqueles dos tempos de várzea, quando o chamavam de “Corró”, eles seguramente ressaltarão a humildade, lado a lado com seu virtuosismo com a bola. Se essa pessoa buscar informações na internet, bibliotecas ou compêndios sobre futebol, lá estará sempre presente essa virtude. Avançando um pouco no tempo, os mais íntimos somarão à humildade, também a bondade: Atributos excepcionais para um idolatrado jogador de futebol.
Durante os cumprimentos no local do encontro, já era claramente perceptível a energia ou aura que o envolvia, nos gestos, na forma de falar. E enquanto pedíamos o café para degustar, logo estava harmonizado o elo de comunicação, necessário aos objetivos do bate-papo.
Indo direto ao assunto, comentei resumidamente o que lera a seu respeito, na Wikipédia, alguns instantes atrás: “… o jeito nobre, a simplicidade nos atos, sempre humilde, o respeito com que encarava a condição de reserva do “Bixiga” no time do Barreiros, a admiração mútua com que se cumprimentavam ainda hoje ao cruzar-se na Igreja de São Judas…” Para mim, tudo isso o conectava fortemente à lembrança dos ensinamentos e exemplos de Frei Cosme. Assim, somente lhe faria uma única mas abrangente pergunta: Qual a influência direta ou indireta do Frei do Valongo nessas conhecidas qualificações pessoais, desde os importantes anos de formação de caráter, na transição da infância para a adolescência?
Clodoaldo, pensativo, parecendo até algo perplexo com a pergunta, arregalou um pouco os olhos e ainda reflexivo comentou que a questão estava mexendo bastante com suas percepções do passado. Logo concluiu admitindo que, certamente, Frei Cosme fora determinante na transmissão de tais ensinamentos, até mesmo sem que ele, à época, tivesse percebido a abrangência com a devida clareza. Então, para melhor ordenar as explicações, recapitulou como tudo isso teria sido possível, tal o grau de influência que o querido frei teve em sua formação nos anos de 1959/60/61, mais precisamente entre os 9 e 11 anos.
Nascera em Itabaiana, Sergipe, em 1949. Ficando órfão de pai e mãe muito cedo, com 6 anos veio para Praia Grande, em São Paulo, para morar com o irmão mais velho. Caçula de 10 irmãos, em 1959 transferiu-se para a vizinha cidade de Santos, para a casa de uma irmã, moradora da Vila São Bento, ao lado do Morro de São Bento e bem perto da Igreja do Valongo.
Logo se enturmou com os meninos da vizinhança que o foram introduzindo nos segredos do bairro.
Um dia o levaram à Igreja do Valongo, onde todas as terças-feiras se distribuía o famoso pãozinho de Santo Antônio. Os saborosos pãezinhos, distribuídos em intervalos regulares ao longo do dia, eram muito apreciados pelas crianças de rua do pobre bairro operário, que assim conseguiam amenizar o irremediável apetite, nunca saciado em sua casa, quando a tinham. No fim desse dia os amigos mais veteranos lhe ensinaram outro artifício. Levaram-no para conhecer um frei alemão grandão que lhes daria pacotes de pão para toda a família em casa. O frei que nunca o tinha visto por ali, conversou com ele, perguntou por seus familiares e onde morava.
A partir daquele dia o pequeno Clodoaldo passou a frequentar com assiduidade crescente a Igreja do Valongo, infalivelmente no dia dos pãezinhos; logo se tornou amigo do frei alemão e em pouco tempo estava no catecismo. Para virar coroinha foi um pulo.
Daí em diante ficava cada vez mais tempo no Valongo. Ajudava nas missas, nos casamentos e em outros afazeres diversos. Aproveitava cada oportunidade para poder ser mais útil, de preferência perto da hora do almoço. Segundo sua própria expressão, só não ficava para dormir na igreja. Lá se sentia acolhido, em segurança e com a barriga satisfeita.
Após dois anos dessa intensa e para ele prazerosa vivência no ambiente litúrgico de aprendizado no convento franciscano, foi levado pela evolução natural do processo a ingressar no Seminário Frei Galvão, na cidade de Guaratinguetá/SP. Lá, como seminarista iniciante, suas obrigações religiosas eram praticamente a continuação do que já fazia, com prazer, no Valongo. Os estudos mais organizados e profundos o estimulavam, enquanto as refeições fartas, variadas e saborosas se repetiam em dádivas diárias. Para arrematar, logo se tornou o centro e objeto de ambição dos times de futebol organizados pelos seminaristas. Todos o queriam nas suas equipes, pois aquela que o conquistava, sempre ganhava de 10 ou mais gols de diferença. Era um fenômeno nunca visto, nem por novatos, nem pelos veteranos do Seminário. Naturalmente também, nem pelos atentos superiores. E aí ocorreu a primeira grande inflexão em sua verdadeira vocação.
A fama entre os novos colegas, bem como o endeusamento decorrente a seguir, acabaram por lhe encher a cabecinha, com grandes e novos raciocínios. Os mais próximos o embalavam com sinceridade, mostrando-lhe como ele poderia ser um novo Pelé ganhando muito dinheiro para si ou para toda a família. Em algumas semanas de constante conflito interno, a incipiente vocação franciscana entrou em xeque. Pouco mais de dois meses, após o ingresso no Seminário, durante uma das visitas de acompanhamento que Frei Cosme fazia a seus pupilos, Clodoaldo lhe pediu para retornar a Santos.
Aos 11 anos já tinha certeza do que queria de verdade. Os ensinamentos e a maturidade precocemente assimilada nos últimos anos, haviam deixado o pequeno “Corró” pronto para os desafios a serem superados nessa nova etapa que começaria em sua vida.
Até o falecimento de Frei Cosme, em 1978, Clodoaldo, sempre que podia, voltava ao Valongo, em busca do amigo, dos seus conselhos e de sua bênção.
Clodoaldo Tavares Santana
Por:
German Aguirre
Jornalista
Ex-coroinha
Ex-seminarista
Nunca ouvi falar desses momentos de infancia do Clodoaldo, e nem imaginava. Parabens pela entrevista, gostei muito.